Costura
Abri a porta emperrada do armário para pegar o velho tricô inacabado. Decidi que, depois de anos, terminaria aquele bendito xale. Já não me lembrava mais da receita (o trançado é depois de quantas fileiras, meu Deus?!), muito menos como entrelaçar a lã de forma mais solta (por que esse ponto está tão apertado assim?), mas tinha certeza de que precisava sair das telas que ainda me servem de porta para o mundo. Estou exausta de ser forçada a entrar em contato com o externo apenas à distância. Eu quero mesmo me fundir a ele em caminhos e poesias e choros e risos e abraços e beijos e cafunés. Enquanto esta escalada crescente de aconchego não me é possível, me proponho o mergulho, mesmo sem saber nadar, naquilo que me é essência. Parto em busca daquela que se perdeu nos labirintos ao tentar ser ela mesma e tento pescar na memória onde foi parar a coragem de quem batia no peito e bancava o que queria. Quando foi que eu deixei de dizer o que sei, o que penso, o que sinto e desejo? Passei a me camuflar primeiro em notas altas, depois em tentativas frustradas de sempre saber tudo, em querer resolver tudo para todos (quem resolve as minhas dores, afinal?).
O desafio de tricotar pela primeira vez com as gatas ao lado amplia ainda mais o grau de dificuldade: novelos são puxados da sacola e rolam ao longe, fios se rompem, recebo mordidas e patadas nas minhas longas agulhas azuis. Nada me impede de continuar, mas tomo muito mais tempo do que previa. Tempo e paciência. Acabo precisando fazer muitas emendas desnecessárias no fio. Elas são tão visíveis quanto a medida improvisada no trançado feito à olho. Verde-bandeira, era para ser bonito. Verde é a minha cor preferida, contudo esta não será a melhor peça nascida de um tricô.
Na terapia tenho lidado com os meus medos. Não sei por que raios resolvi fazer isso agora, nesse cenário apocalíptico, entretanto sinto que preciso. Minha intuição nunca falha. Talvez seja a hora de expurgar o medo da saúde, da política, do caos, da ignorância, do desamor. Todos. Juntos. De uma vez. Sinto que meu riso se perdeu em algum lugar no passado e que o meu pranto nasce eminente de algum lugar do futuro. Meus pés fincados no chão me põem ereta, em frente ao meu reflexo no espelho.
Olhei para aquele xale quase pronto. Medi no corpo, achando que já estava num tamanho bom. Minha mãe opinou dizendo que talvez pudesse crescer mais. Talvez, foi tudo o que consegui dizer. Por dentro, ebulição: tudo na vida pode crescer mais. Amor, aconchego, conhecimento, felicidade, dor, desprezo, solidão. Decidi tricotar até o fim do novelo que estava acabando e que, ao contrário do que tinha programado, não faria a franja. Me pareceu mais elegante sem ela, embora eu não saiba exatamente onde mora a elegância em mim.
Falta o controle. Puxar o ar em três, soltar em seis. Esse foi o exercício que melhor funcionou até agora: controlar a respiração na falta de controle diante do meu maior medo. Meu sol em virgem compara ter controle com respirar e como isso funciona como um analgésico-anestésico contra o desespero. Ter tudo limpo, organizado, nas condições ideais de temperatura e pressão é sinônimo de tranquilidade e, por consequência, de felicidade. Tenho lidado com os meus medos mais profundos e com a falta de controle sobre eles. Não ter controle também me é pavor, mesmo que no fundo, bem lá no fundo, eu saiba que não é possível controlar nada. Viver é um jogo intrínseco de ilusões.
Ponho as agulhas sobre o colo e observo. Já não sou mais aquela garotinha que aprendeu a tricotar com a vizinha. Mas quem sou eu, afinal? Essa pergunta me persegue desde que eu compreendi o que é um pensamento. Nunca cheguei a uma resposta concreta. Talvez nunca chegue. Entretanto, entendo que sua multiplicidade chega de modo lento, peça após peça, neste quebra-cabeça que monto ao longo da passagem dos anos. Com as agulhas no colo, noto um ponto perdido formando um buraco no meu pequeno verde infinito. Preciso desmanchar mais dez carreiras para consertar o passado aberto ali no meio. Não respiro, bufo de raiva. Tenho vontade de jogar o tricô e os medos fora. Quero sufocá-los em um saco e, na sequência, arremessá-los para longe.
Encho os pulmões em três, os esvazio em seis. Desmancho e recomeço aquele trecho, ponderando como tricotar se parece com viver. Às vezes a gente só tem noção dos rumos depois de ter trabalhado em idas e vindas, nos dois lados: avesso e direito. Na hora mesmo, não dá para ver o todo e saber 100% quais serão as consequências de um ponto perdido. Refaço aquele trecho pensando se o ideal mesmo não seria desmanchar o xale por inteiro e começar do zero, com receita, sem emendas. Vale a pena jogar mais de cinco anos de intermitências fora? Repito: um, dois, três... um, dois, três, quatro, cinco, seis.
Acabo optando por um rumo diferente dos anteriores: aceito a imperfeição e sigo em frente, determinada a terminar o xale e por um ponto final nesse passado. O novelo já se aproxima do fim. Aceito os meus medos, o coração mais uma vez partido, as desilusões e sigo em frente. Começo o arremate. De longe tenho um xale bonito, elegante, forte. De perto, um acessório assimétrico e todo remendado (mas que cumpre a sua função de me aquecer). Por fim, pondero: todas as peças artesanais têm um quê de seus artistas.